CONTOS ESTRANHOS — Ed Zaccaron

Antes

— A senhora tem razão, Dona Lourdes. Estamos apenas poupando-a da dor. Lamento ter de dizer-lhes isso.

Uma pontada lancinante a fez grunhir. Em seguida, outra. Meu Deus, pensou, por que quer que eu morra de dor antes de morrer de verdade?

Ouviu o ruído metálico da fechadura e fechou os olhos para fingir dormir. Não queria que Verônica soubesse que estava acordada e com dor. Através das pálpebras cobrindo-lhe a visão, percebeu a luz do corredor penetrar lentamente no quarto. A seguir, a semiescuridade retornaria com o fechamento da porta, ouviria passos suaves até a poltrona, a qual rangeria discretamente ao receber o peso da filha, e ouviria um suspiro, talvez.

Mas nada disso aconteceu.

Abriu os olhos. Surpreendeu-se com a silhueta de um homem parado para cá da porta, vestindo um jaleco branco — dava para ver que era branco porque a luz do corredor caía-lhe sobre os ombros —, com as mãos pendendo no ar, uma de cada lado do quadril. (O ambiente seguia silencioso, a poltrona seguia vazia.) O homem, talvez enfermeiro, talvez médico, deu quatro passos e parou à beira da cama. Junto com ele veio cheiro de rosas, como se carregasse um buquê nos braços. A idosa estremeceu ao notar que no lugar do rosto não havia nada, a não ser um vazio escuro e dois olhos acesos, alaranjados. Não era uma pessoa de verdade, era a morte vindo buscá-la. Nunca pensara que seria algo tão sinistro assim, teve medo. Num murmúrio débil começou a rezar:

— Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso…

— Shhh — fez o homem de branco. Em seguida, segurou o braço dela.

Ao toque das mãos macias do homem, Lourdes teve a sensação de ser retirada de baixo de um peso que a esmagava e acreditou flutuar. A morte a estava levando, e não queria ir-se sem antes se despedir da filha, pedir-lhe que sempre rezasse por ela. Seu chamado saiu semimorto:

— Verônica…

Um estalo e as luzes do quarto se acenderam. Verônica entrou apressada, o homem de branco deu um passo para o lado a fim de permitir-lhe acesso à cama.

— Estou aqui, mãe. Quer mais uma dose de…

— Não, eu… — Dirigiu o olhar para o visitante de branco. — Eu…

Houve um breve silêncio.

— Levante-se daí, Lourdes, anda — disse o homem. Em seguida, saiu para o corredor e desapareceu de vista.

— Quem era ele, Verônica?

— Ele quem, mãe?

— O médico que estava aqui.

— Não havia médico nenhum… — Verônica fez uma pausa brusca. Entendeu que sua mãe estava alucinando, e seu fim estava perto. Sentiu vontade de chorar. Alisou os cabelos brancos e ralos de Lourdes e beijou-lhe a testa. — Não sei, mãe, não o conheço.

TRECHOS DE CONTOS ESTRANHOS

A DEVOLUÇÃO

Pensamento de Dona Lourdes em seu leito de morte:

Meu Deus, pensou, por que quer que eu morra de dor antes de morrer de verdade?

Cena em que o invasor do apartamento da Jornalista Stella Emerald se aproxima dela:

Um passo a mais, tocou o rosto da moça cavalheirescamente com a costa do dedo enluvado. Uma ameaça de deboche despontou em sua feição e, em seguida, soprou o rosto da moça paralisada.

Noticia no jornal:

As luzes do apartamento se apagaram, deixando o ambiente em absoluta escuridão.

PROFESSOR DE FILOSOFIA É ASSALTADO POR PARCEIRO SEXUAL EM MOTEL.

Logo abaixo da manchete, o texto dizia que o professor O. da Cunha fora assaltado por um aluno em um encontro sexual, e que a polícia acreditava que a motivação do assalto fora uma desavença financeira. Recortes da notícia, feitos pelo T. E., se espalharam na internet durante os dias seguintes.

Outra notícia no jornal:

Na manhã seguinte, o policial leu a manchete: MULHER ENCONTRA ESPOSO E SEU AMANTE MORTOS NA GARAGEM.

Mais uma notícia no jornal:

JORNALISTA ALEGA TER PERDIDO A VOZ POR CAUSA DE MALDIÇÃO — Na noite passada, por volta da meia-noite, a jornalista Stella R. Emerald, 25, após enviar uma nova matéria à redação do nosso jornal, ouviu um barulho em sua cozinha. Segundo ela, ao verificar o que tinha acontecido, deu de frente com um invasor mascarado à porta da área de serviço. O susto colocou-a em estado de choque, a ponto de não conseguir gritar por ajuda ou correr para fora do apartamento. O mascarado, como ela descreveu, de roupa preta e chapéu roxo, soprou-lhe o rosto, deixando-a imediatamente muda. A sigla H. N. M., segundo Stella, apareceu em sua testa após o sopro. Stella afirmou que se tratava de uma maldição, não sabia por quê.

O MANEQUIM

Mary levantou o olhar do recipiente de sorvete à sua frente, ainda intocado, e fitou Júlia como se estivesse hipnotizada. Júlia sustentou o ar de irritação, mas não conseguiu evitar o receio. (Mary era o marido no relacionamento e às vezes era agressiva. Tinha o cabelo curto, à moda militar. A tatuagem no braço esquerdo era — como sempre afirmava — a marca que representava o homem que havia dentro de si.)

DOÇURA

Donald não planejara transar com três — não ao mesmo tempo —, um só bastaria, mas o mais sexy, com quem queria passar a noite, e aparentemente o líder do trio, dissera-lhe que se não fosse com os três não iria com nenhum deles.

— Esta é a condição, doçura — acrescentou, dando uma piscadela para Donald. — Não gosta da ideia de três cacetes de uma vez só? Nunca experimentou?

Donald riu hesitante, encarando-o. Os olhos pretos do líder eram vivos e envolventes. Depois deu uma estudada nos outros dois. Um era magro e quase bonito. Encarava Donald como se perguntasse E aí? Vamos ou não vamos? E o outro era gordo — pelo jeito desde a infância —, mas tinha um rosto bonito, beirando a inocência. Sua postura era a de quem faria o que os companheiros decidissem. Os três estavam em roupas simples e cheiravam a perfumes razoáveis. Pelo menos o líder e mais sexy, que se encontrava a uma curta distância de Donald à mesa, cheirava à comum masculinidade com valor de pelo menos duzentas pratas. Donald gostava desse cheiro popular. Era o cheiro que grudaria em qualquer um ao mais breve contato físico e lhe faria companhia até o último minuto de uma noite.

Estava à beira de recusar a proposta, por temor a um desfecho desagradável de uma história de sexo entre um homem de trinta e oito anos, em roupas de boas marcas, com um carro até caro, e três desconhecidos de vinte e poucos de idade, que não tinham sequer se apresentado, nem dito se tinham ou não emprego, quando o líder voltou a falar.

— Garanto que vai ter uma noite inesquecível, doçura. Tudo em nome da diversão. — O líder se dirigiu aos dois do outro lado da mesa. — Não é mesmo, rapazes?

O magro anuiu com a cabeça. Em seguida, recostou-se na cadeira, esparramando as pernas, e levou a mão para debaixo da camiseta para massagear o abdome. (Donald conhecia muito bem o velho chamariz.) O gordo olhou de viés para a barriga do companheiro — em seu olhar havia inveja, Donald tinha certeza de que sim — e então apenas segurou a região do pênis por cima da calça com uma força quase esmagadora.

— Somente em nome da diversão — Donald reiterou.

— Do que mais seria?

— De grana?

O líder dirigiu o olhar para os dois companheiros de novo.

— Alguém aqui falou em grana?

A resposta da dupla foi uma negativa sincrônica de cabeça.

— Se não quer, doçura, a gente vai achar quem queira. Já não tem quase ninguém nas ruas desta puta vila, e estamos a fim de gozar. Vamos, rapazes. — O líder se levantou.

Donald era formado em Arquitetura pela melhor universidade do estado, talvez do país. Falava quatro idiomas estrangeiros e tocava piano como se fosse profissional — e tinha uma paixão ardente por Chopin. Retornara a M.B., de onde era originalmente, a convite da Into the Sky, a maior empresa de construção civil daquela região. E havia semanas que não fazia sexo, sentia a libido arranhando suas nádegas.

— Tudo bem. Vamos lá então — disse.

Os três homens sorriram.

O RETRATO

Alguém gritou:

Uma foto do nosso encontro, vamos!

— Pegue, John. Tire uma foto nossa — disse a moça loira.

John pegou o aparelho da mão dela, e ela correu apressada para se colocar bem ao lado do irmão, com quem acabara de ter um bate-boca afervorado lá no quarto. (Objetos foram atirados para todos os lados, alguns se estilhaçaram, socos foram dados no guarda-roupa velho, enquanto gritaram nomes — Sua biscate! Seu veado! Sua bruxa maldita! Seu vagabundo! — um para o outro, e a mãe gritava de longe e a plenos pulmões para que parassem com a aquilo. John se lembrou de tê-la ouvido sussurrar para si mesma que sua vida só estaria em paz quando os dois tomassem um rumo na vida; ter dois filhos vagabundos não era o maior sonho de uma mãe ajuizada. Então, que fossem para bem longe daquela casa.) A moça loira passou um braço nas costas do irmão, que estampava o sorriso mais artificial de todos, na verdade parecendo um cão rosnando em imagem pausada (John o empurraria de um penhasco à menor provocação), e o irmão passou um braço nas costas da moça loira. No lado direito do par, o pai, um sem-boca-para-nada, apenas esboçando um sorriso de lábios apertados para a câmera.

BOLSA NO CHÃO

No restaurante, um homem chegou perto do balcão de vidro.

— Quem era?

— Uma bicha maluca — respondeu a mulher —, que só sabe encher o saco e que deveria cuidar da própria vida. Não vou falar nada com ninguém. Que Kayany fale o mais alto possível, precisamos da propaganda. E os incomodados que se mudem. Ou que se matem.

— De quem é essa bolsa no chão?

— Cadê?

ANIVERSÁRIO

Depois de um instante de silêncio, Anton disse:

— Faz muitos anos que não coloco sorvete na boca. — Anton comentou.

O dr. Edivandro recostou-se em sua cadeira e ajeitou os óculos no nariz.

— Eu sei, claro que sei, Anton.

— Perdi a conta do tempo. Não tomo café, o cheiro me enoja, não fumo e nunca cheguei perto de bebida alcoólica.

— Pois é. O diabetes está sob controle, você não tem problema de colesterol, nem de triglicérides, de nada. Todos os exames ainda dizem que você tem uma saúde de ferro, meu chapa. Então por que dizer as coisas como as que disse quando chegou?

— Pressentimento, doutor, apenas pressentimento.

— Ora, deixe de histórias, meu jovem!

Anton riu.

— Jovem, uma ova. E por falar nisso, é meu aniversário amanhã. Mais uma porra de ano que passou.

— É mesmo?

— Setenta e um anos.

— Está em boa forma, Anton.

Anton se levantou.

— Preciso ir.

O médico apenas encarou Anton.

À porta, Anton olhou para trás.

— O senhor sabe que sempre achei seu nome muito esquisito, não sabe?

O dr. Edivandro riu.

— É, eu sei, Anton.

CAPTURADO

Alec tinha certeza de que nunca seria pego porque fazia a coisa certa, eliminar deste mundo todo aquele e aquela que não merecia respirar. Mas sua certeza encontrava-se semidesfeita naquele exato momento, embora não tivesse sido pego por causa do que fazia, porque sempre o fizera muito bem. O motivo verdadeiro, descobriria ainda naquela noite.

Encontrava-se sentado em desconforto na parte traseira do carro de polícia, com suas mãos e pés algemados, ouvindo cochichos dos dois policiais, de vez em quando cortados pela estática do rádio no painel. O policial da direita, sentado no assento do carona, virou a cabeça como para dar uma olhadela para trás.

— Sabe que meu colega e eu estávamos na sua cola havia muito tempo, não sabe, seu monte de merda? — disse. — Ah, me desculpe. Você tem um nome. Vou reformular a pergunta. Não sabe, Alec?

Alec olhou de viés para o policial, que agora estava encarando a rua, conforme a viatura se movia. O silêncio do motorista era, até certo ponto, parecido com o silêncio que Alec vinha mantendo.

— Sei que não vai responder. Está bancando o espertinho. Nada que faça vai salvar o seu rabo, Alec. Acabou. 

É. O idiota fardado tinha razão a respeito de uma das coisas que acabara de dizer. Alec não ia responder. Era preciso permanecer calado, não dizer nada até que o momento certo chegasse, observar aqueles dois idiotas com pose de espertos em suas fardas, ouvir todas as palavras que dissessem, agir de acordo com o que planejara para o caso de ser pego.

O policial soltou um risinho.  

— Qual é a sensação de ver a casa cair, Alec?

Como se sentia por ter sido capturado depois de tantos anos? Encontrava-se em completo estado de ira. Logo, logo, ainda naquela noite, aqueles dois policiais saberiam disso.

Dois apitos de outra viatura fizeram aquela em que Alec estava parar.

— Noite movimentada? — perguntou o motorista do outro carro, com o braço estendido para fora da janela.

— Pegamos mais um — respondeu o policial da viatura de Alec. — Um pervertido a menos nas ruas de Cidade dos Santos.

— Parabéns pelo trabalho, rapazes. — O policial da outra viatura colocou o braço para dentro e apoiou a mão no volante. — Estamos indo buscar um patinho também. (Um patinho. Alec sabia o que aquilo queria dizer.) — Nos vemos mais tarde.

— Até mais tarde, Johnny, na 12ª.

O carro recomeçou a andar. A avenida tinha cara de encardida sob a iluminação pública.

— Você é inteligente, Alec. Uma pessoa como você só consegue fazer o que faz às escondidas por muito tempo porque tem a inteligência a seu favor. Não preciso dizer que é um privilégio ser levado preso para cumprir uns anos de cadeia em vez de ser enviado para outro lugar, não sabe? Um lugar escuro, onde, com o tempo, só restariam seu fedor e seus ossos. Olhe pelo lado bom caso precise.

— É irritante que fale meu nome com tanta intimidade — Alec disse, rompendo a sua regra de silêncio. — Não me lembro de tê-lo visto alguma vez na vida anteriormente.

A bunda do policial deu um pulo sobre o assento enquanto ele se virou para encarar Alec, o que fez o veículo balançar.

— Resolveu abrir a boca, Alec? Isso é bom. Não. Isso é excelente.

Alec encarava o policial com olhos encharcados de raiva. O policial sabia disso, mas não se importava.

— Não o conheço, Alec. É impressão sua. Nunca nos vimos antes. Mas a polícia passou a conhecê-lo depois da primeira denúncia.

— Primeira denúncia…

— Isso mesmo. Agora o seu mundinho está acabado. Não era em um mundinho sujo que vivia, Alec?

Alec se ajeitou com dificuldade sobre o assoalho liso da viatura.

— É a verdade que querem, não é mesmo?

— Sim, a mais pura verdade, Alec. Com ela, só terá a lucrar.

— Muito bem. Mas, antes, tenho uma exigência a fazer.

— Não está em condições de exigir nada, Alec.

Os dois homens encaram-se por um instante.

— Nesse caso — Alec disse —, permanecerei calado até o momento que eu julgue certo de falar.

O policial raspou a garganta e se remexeu no assento.

— Tá bom, Alec. Diga qual é a sua exigência. Talvez podemos entrar num acordo.

— Pare de falar o meu nome repetidamente.

O policial pareceu pensar.

— Melhor, pare de falar meu nome de vez — Alec acrescentou. — Meu nome na sua voz soa uma coisa horrível, detesto a intimidade que usa ao pronunciá-lo.

O policial deu a entender que estava pensando um pouco mais. 

— Tudo bem, Al… Tudo bem. Vamos à verdade então, que mais nos interessa.

— Não vai mais falar meu nome, certo?

— Correto.

— Não sei o que quis dizer quando disse que uma pessoa como eu só faz algo às escondidas por tanto tempo porque tem a inteligência a seu favor.

— Ora, Al… Desculpe o deslize. Sabe que estou falando dos rapazinhos que te tiram do eixo.

— Rapazinhos?

— Não é de garotinhos que gosta?

Alec sentiu ódio cair em sua corrente sanguínea.

— Um momento. Estão me levando preso porque acreditam que eu sou um… pervertido?

— A questão não é acreditar, Alec. Temos certe…

— Pare de falar meu nome, porra!

O policial assustou-se com o grito, deixando um leve amedrontamento transparecer. Mas, em seguida, pegou sua arma do colo e a apontou para Alec por entre as barras de ferro.

— Escuta aqui, seu pervertido do caralho, fale baixo com a polícia.

— Não sabem o que estão fazendo — Alec disse. — Não sou quem pensam que sou.

— Agora vou ter de falar seu nome. Não é Alec Durand que se chama, monte de merda?

— Sim, esse é o meu nome.

— Pois bem. Estamos com o marginal certo na viatura. — O policial parou de apontar a arma e a colocou de volta. 

Alec sentiu o carro virar à esquerda e subir uma pequena rampa. Endireitou as costas para ver onde estavam. Pararam em frente a um pequeno prédio de dois andares, com uma janela larga para cada andar, e, entre elas, em letras pretas e grandes, 12º DP. Não havia luzes acesas, o lugar tinha aspecto de abandonado.

— Chegamos, Alec. Agora não temos mais um trato. Se gritar comigo mais uma vez, vai levar uma coça. Vai se arrepender.

O policial do assento do carona saiu primeiro. O motorista, em seguida.

— Desça — disse o policial assim que abriu a porta traseira da viatura. — E comporte-se, se não quiser que eu o carregue pelo cabelo.

Alec arrastou-se até a beirada do assoalho da viatura, jogou os pés algemados no chão e se colocou de pé sem dificuldade. Em seu olhar ainda havia ódio. O policial segurou o cotovelo de Alec.

— Vamos — disse.  

Quando o policial ergueu o olhar na direção da porta de entrada, imediatamente franziu o cenho.

— Tem alguma coisa errada aqui, Tom — disse para seu colega.

— Não tenho dúvida disso, Arn.  

— Não tem ninguém de plantão?

— Parece que não, Arn.

— Vamos entrar e ver de uma vez.

Lá dentro, Arn tateou a parede e encontrou o pino de ligar a luz; o estalo retumbou pela pequena sala de entrada.

— Venha — disse ele ao prisioneiro, levando-o por um estreito corredor.

Assim que chegaram em frente a uma das celas, o policial abriu a porta e empurrou Alec para dentro e a trancou.

— A porta da frente está trancada, Tom?   

— Positivo.

— Ótimo — Arn disse e se voltou para Alec. — Me esqueci de avisá-lo que antes de ir para a cadeia, não esta, claro, passaria por uma pequena prova de resistência, Alec. Vai fazer bem a você. Vai servir de lição para suportar o que terá de fazer para sobreviver entre marginais da pesada. Acredito que sabe o que fazem com caras pervertidos como você, não sabe?

Alec encarou Arn.

— Me mostre a prova de resistência, então, policial de merda.

Os olhos de Arn faiscaram.

— Seu veado imundo. Como se atreve a falar assim com a polícia?

— Um amontoado de merda são vocês todos.

Arn arrancou o cassetete da cintura. Em seguida, Tom fez a mesma coisa.

— Vamos mostrar para ele quem é que manda aqui, chefe.

Alec explodiu em gargalhadas.

— Chefe? — Mais gargalhadas. — Seu puxa-saco de merda.

— Abre a cela, chefe. O primeiro round é meu.

Arn destrancou a cela e escancarou a porta, que bateu contra a estrutura de trás, produzindo um estouro metálico e pesado.

O delegado bateu a mão na mesa.

— Façam uma varredura nesta puta cidade. Tem muito pervertido por aí. Vamos pegar todos os suspeitos! Todos serão suspeitos até que provem o contrário.

Quando Tom entrou na cela, o rosto de Alec se encontrava imperturbado.

— Venha, policial de merda. Venha me dar a lição — desafiou.

Quando Tom deu o primeiro passo na direção de Alec, um rosnado metálico veio de dentro de uma das celas dos fundos.

— O que foi isso, chefe?

As luzes se apagaram antes de Arn responder.

Uma rajada de vento surgiu do nada e começou a girar no ambiente, fazendo as portas das celas bater contra suas paredes de metal, o chão começou a estremecer, estouros de lâmpadas, e um curto-circuito, emitindo uma rápida claridade no ambiente. Nesse rápido instante, Arn, Tom e Alec se assustaram com o que viram. A silhueta de alguém.  

— Puta merda, chefe! Que porra é essa?

— Não sei, Tom. Fogo! Seja quem for!

Tom e Arn iniciaram uma sessão de disparos na direção de onde a silhueta tinha aparecido. Mas, pelo jeito, nenhum pareceu acertar corpo qualquer.

Outro relâmpago de eletricidade.

— Ali — Tom gritou, apontado para o intruso, já em outro lugar.

Mais tiros, e todos eles acertaram barras de ferro e, pelo ruído, as paredes.

Então a claridade retornou por completo.

Alec estava caído de lado no chão, em posição fetal, como a se proteger, ou tentar pelo menos. Os dois policiais estavam um de costas para o outro, com suas armas apontadas para a frente.

— A festa acabou, rapazes — disse uma voz grave, fantasmagórica.

Em um sobressalto, Tom e Arn se voltaram para a direção da voz, ainda com suas armas apontadas. Era um mascarado com pose delicada, até despreocupada. Não tinha arma, não tinha nada além de roupas escuras justas, máscara e chapéu pretos. Tom e Arn deram-se conta de outra coisa. Estavam presos em uma das celas.

Um disparo contra o mascarado saiu da arma de Arn. A bala chocou-se com uma das barras da cela. Arn puxou o gatilho mais uma vez. Saiu apenas um clique fraco.

— Me dá a sua, Tom.

A arma de Tom saiu da mão dele como se tivesse sido puxada por algo invisível e forte. Ela caiu no lado de fora da cela, e o mascarado riu, mostrando olhos e dentes bonitos.

— Não tenho dúvida de que se livraria desses merdas, Alec. — A voz ainda era grave e fantasmagórica. — Mas teria certa dificuldade.

— Quem é você? — Alec perguntou.  

— O que quer que eu faça com eles, Alec? Diga, e farei.

— Por favor — Arn implorou —, não nos mate. Somos apenas dois policiais cumprindo nossa função à sociedade.

— A sua função? — Alec explodiu. — Vocês me pegaram e me acusaram de uma coisa que não é minha. Que função é essa, porra?

— Responda, Alec — insistiu o mascarado.

— Eu mesmo farei o que tenho de fazer — Alec respondeu, encarando os dois policiais. — Mas preciso me livrar dessas merdas.

Como se o mascarado tivesse uma batuta na mão enluvada, fez um movimento rápido. As algemas das mãos e dos pés de Alec caíram no chão. Tlim, tlim.

— São todos seus, Alec — o mascarado informou. E desapareceu em seguida.

Fez-se um silêncio de expectativas.

— Agora sou eu o problema que têm, seus sacos de lixo. — Alec riu. — Então? Queriam o quê? Mais pontuação ao me prenderem? O que iriam fazer exatamente para me incriminarem? Hein? — Alec andou para fora da cela e se colocou em frente à dos dois homens fardados.

— O que vai fazer com a gente, pervertido? — Arn perguntou. — Vai querer foder as nossas bundas também?

— Cale essa boca imunda.

— Ele não vai fazer nada com a gente, chefe — Tom comentou. — Vai nos matar?

Alec ergueu uma das mãos como se fosse pegar algo de suas costas. Os dois policiais ficaram apreensivos ao vê-lo fazer o movimento.

— Está enganado, Tom — Alec disse. — Veja só o que tenho aqui.

Era uma lâmina comprida e curvada, pondo à vista um brilho prateado.

— A gente não revistou esse imbecil, chefe?

— Sim, a gente revistou.

Alec deu um risinho e se aproximou mais.

— São os policiais mais incompetentes que já conheci, rapazes.

 A ponta da lâmina começou a roçar as barras da cela lentamente. O ruído era sinistro.  

Alec girou a chave da porta da cela. Claque!

— Venha, gostosão, venha que vamos lhe mostrar como se acaba com alguém imundo como você.

Alec abriu a porta e entrou na cela.

— Um prazer — disse.  

Tom e Arn deram um passo atrás.

— Por que não deixa a foice lá fora, bonitão?

Alec deu um salto e girou o corpo duas vezes no ar. Puf! Puf! A lâmina acabara de separar os pés de Tom e Arn de suas respectivas pernas.

— Filho da puta! Filho da puta! — Arn berrou.

— Eu, sim, elimino o lixo deste mundo. — Alec riu. — Olhem pelo lado bom da coisa, rapazes, caso precisem. — Alec riu de novo. 

A DEVOLUÇÃO

Rino Soares era um homem amargo, que desejava ao resto do mundo a amargura (ou coisa pior) em que vivia chafurdado. Sob o manto protetor do anonimato que encontrara na internet, criara um personagem pseudointelectual — pseudocorajoso, mas verdadeiramente cruel — que incitava a inveja, o ódio, o preconceito, que se dedicava à infelicidade alheia.

Uma noite, porém, enquanto flertava com seu espesso maço de dinheiro, trancado em sua loja, percebeu que não estava sozinho, havia alguém escondido entre as prateleiras. Teve certeza de que ia sofrer um assalto. Mas quando o visitante se colocou à vista, Rino quase teve um mal súbito. O encontro durou poucos minutos.

Tempo depois, ainda com esperança na competência da polícia – a polícia era quem colocaria um desfecho adequado na situação –, deu-se conta de que algo além do natural estava errado. A marca que o visitante deixara em sua perna estava ficando maior a cada hora. Em busca de compreender o que estava acontecendo, Fernanda, sua ex-esposa, colocou-o diante de Jacira, uma vidente popular de uma cidade vizinha, Vento Alegre. A vidente esclareceu que o que havia batido em sua porta fora o acerto de contas. E que lhe restava poucos dias de vida.

Rino trovejou à vidente e à ex-esposa, dizendo que iria ao inferno para se livrar da maldição, se fosse preciso. A vidente lhe desejou boa sorte.

A Devolução – Ed Zaccaron         

A DEVOLUÇÃO — PRÓLOGO (ED ZACCARON)

Resolvi assinar Zaccaron em homenagem à minha mãe. Para tê-la sempre comigo, e para me dar sorte.

Em breve, A Devolução será publicada, Editora Viseu

Prólogo

Três semanas antes — Uma pontada de dor a fez acordar e lembrar de sua tristeza. Era hora de voltar a enfrentar mais uma das etapas do fim, até que a próxima dose de morfina chegasse. Quanto tempo tinha se passado desde a última? Não sabia dizer. Mas, pela semiescuridade do quarto e silêncio do corredor, já era tarde da noite, quem sabe madrugada, o que queria dizer que conseguira dormir um pouco mais dessa vez. Virou a cabeça devagar na direção da poltrona de acompanhantes. Verônica não se encontrava nela, talvez tivesse saído para tomar um pouco de ar fresco. Lembrou-se da aflição no rosto da filha enquanto o Dr. Newton respondia-lhes com a verdade. A senhora tem razão, Dona Lourdes. Estamos apenas poupando-a da dor. Lamento ter de dizer-lhes isso.    

Uma pontada lancinante a fez grunhir. Em seguida, outra. Meu Deus, pensou, por que quer que eu morra de dor antes de morrer de verdade?

Ouviu o ruído metálico da fechadura e fechou os olhos para fingir dormir. Não queria que Verônica soubesse que estava acordada e com dor. Através das pálpebras cobrindo-lhe a visão, percebeu a luz do corredor penetrar lentamente no quarto. A seguir, a semiescuridade retornaria com o fechamento da porta, ouviria passos suaves até a poltrona, a qual rangeria discretamente ao receber o peso da filha, e ouviria um suspiro, talvez.

Mas nada disso aconteceu.

Abriu os olhos e surpreendeu-se com a silhueta de um homem parado para cá da porta, vestindo um jaleco branco — dava para ver que era branco porque a luz do corredor clareava-lhe os ombros —, com as mãos pendendo no ar, uma de cada lado do quadril. (O ambiente seguia silencioso e a poltrona, vazia.) O homem, enfermeiro, talvez médico, deu quatro passos e parou à beira da cama. Junto com ele veio cheiro de rosas, como se carregasse um buquê nos braços. A idosa estremeceu ao notar que no lugar do rosto não havia nada, a não ser um vazio escuro e dois olhos acesos, alaranjados. Não era uma pessoa de verdade, era a morte vindo buscá-la. Nunca pensara que seria algo tão sinistro assim, teve medo. Num murmúrio débil começou a rezar: — Pai nosso que estais no céu…

— Shhh — fez o homem de branco. Em seguida, segurou-lhe o braço.

Ao toque, Lourdes teve a sensação de ser retirada de baixo de um peso e começar a flutuar. A morte a estava levando, e não queria ir-se sem antes se despedir da filha, pedir-lhe que sempre rezasse por ela. Seu chamado saiu semimorto: — Verônica…

As luzes do quarto se acenderam. Verônica entrou apressada, o homem de branco deu um passo para o lado a fim de permitir-lhe acesso à cama.

— Estou aqui, mãe. Quer mais uma dose de… 

— Não, eu… — Dirigiu o olhar para o visitante de branco. — Eu…

Houve um breve silêncio.

— Desejo-lhe melhora, Dona Lourdes — disse o homem, e saiu para o corredor, desaparecendo de vista.

— Quem era ele?

— Ele quem, mãe?

— O médico que estava aqui. — Não havia médico nenhum… — Fez uma pausa brusca, sentiu vontade de chorar. Alisou os cabelos brancos de Lourdes e beijou-lhe a testa.  — Não sei, mãe, não o conheço.

Mão Esquerda – Capítulo 5

Olavo acordou suado na manhã seguinte. As estrelas com as quais sonhara enquanto estava no hospital foram visitá-lo de novo. A maior tinha olhos, nariz e boca dessa vez. Ela sorriu-lhe depois de adverti-lo: Seja justo nas suas decisões. A vida e a morte são duas coisas igualmente importantes. Ela não tinha voz, mas Olavo entendeu o recado.  

            — A vida e a morte?

            Levantou-se e foi direto para o banheiro.   

— A vida e a morte… – repetiu, enquanto a água morna escorria-lhe sobre o corpo. — A vida e a morte…

Ele saiu do banheiro com uma toalha na cintura e dirigiu-se à cozinha. Como todas as manhãs, era de um bom café que precisava.

Houve um arranhado na porta. Ted queria entrar e ganhar biscoitos de água e sal.

— Um momento, amigão – Olavo falou alto e foi ao quarto. Dava tempo, pois ainda levaria alguns minutos para a água ferver. Tirou a toalha da cintura e jogou-a sobre a cama e vestiu uma troca de roupa batida, porém limpa e cheirosa.

Quando abriu a porta da cozinha, Ted, seu golden retriever, estava sentado sobre as patas traseiras, no aguardo.

— Oi, Ted. Como passou a noite?

Ted ergueu-se e botou as patas dianteiras nos ombros do dono. Em seguida, produziu um som que Olavo nunca o ouvira fazer. Não era de lamento, Olavo entendeu que não. Era de orgulho e de agradecimento misturados.

— Do que você está falando? De ontem à tarde?

O animal pendeu a cabeça como para entender o que Olavo estava dizendo.

— Não concorda que a cólica da enfermeira e o acidente dos assassinos de animais tenham sido puras coincidências?

O golden retriever deu um latido grave, desceu ao chão e dirigiu-se à cozinha. Parou ao lado da porta do armário onde sabia que os biscoitos estavam.

Enquanto Ted comia os biscoitos e, de vez em quando lambia o leite gelado, Olavo caiu em pensamentos. Nunca ouvira ou entendera a “voz” de Ted, não de modo claro. Aquela fora a primeira vez.