Alec tinha certeza de que nunca seria pego porque fazia a coisa certa, eliminar deste mundo todo aquele e aquela que não merecia respirar. Mas sua certeza encontrava-se semidesfeita naquele exato momento, embora não tivesse sido pego por causa do que fazia, porque sempre o fizera muito bem. O motivo verdadeiro, descobriria ainda naquela noite.
Encontrava-se sentado em desconforto na parte traseira do carro de polícia, com suas mãos e pés algemados, ouvindo cochichos dos dois policiais, de vez em quando cortados pela estática do rádio no painel. O policial da direita, sentado no assento do carona, virou a cabeça como para dar uma olhadela para trás.
— Sabe que meu colega e eu estávamos na sua cola havia muito tempo, não sabe, seu monte de merda? — disse. — Ah, me desculpe. Você tem um nome. Vou reformular a pergunta. Não sabe, Alec?
Alec olhou de viés para o policial, que agora estava encarando a rua, conforme a viatura se movia. O silêncio do motorista era, até certo ponto, parecido com o silêncio que Alec vinha mantendo.
— Sei que não vai responder. Está bancando o espertinho. Nada que faça vai salvar o seu rabo, Alec. Acabou.
É. O idiota fardado tinha razão a respeito de uma das coisas que acabara de dizer. Alec não ia responder. Era preciso permanecer calado, não dizer nada até que o momento certo chegasse, observar aqueles dois idiotas com pose de espertos em suas fardas, ouvir todas as palavras que dissessem, agir de acordo com o que planejara para o caso de ser pego.
O policial soltou um risinho.
— Qual é a sensação de ver a casa cair, Alec?
Como se sentia por ter sido capturado depois de tantos anos? Encontrava-se em completo estado de ira. Logo, logo, ainda naquela noite, aqueles dois policiais saberiam disso.
Dois apitos de outra viatura fizeram aquela em que Alec estava parar.
— Noite movimentada? — perguntou o motorista do outro carro, com o braço estendido para fora da janela.
— Pegamos mais um — respondeu o policial da viatura de Alec. — Um pervertido a menos nas ruas de Cidade dos Santos.
— Parabéns pelo trabalho, rapazes. — O policial da outra viatura colocou o braço para dentro e apoiou a mão no volante. — Estamos indo buscar um patinho também. (Um patinho. Alec sabia o que aquilo queria dizer.) — Nos vemos mais tarde.
— Até mais tarde, Johnny, na 12ª.
O carro recomeçou a andar. A avenida tinha cara de encardida sob a iluminação pública.
— Você é inteligente, Alec. Uma pessoa como você só consegue fazer o que faz às escondidas por muito tempo porque tem a inteligência a seu favor. Não preciso dizer que é um privilégio ser levado preso para cumprir uns anos de cadeia em vez de ser enviado para outro lugar, não sabe? Um lugar escuro, onde, com o tempo, só restariam seu fedor e seus ossos. Olhe pelo lado bom caso precise.
— É irritante que fale meu nome com tanta intimidade — Alec disse, rompendo a sua regra de silêncio. — Não me lembro de tê-lo visto alguma vez na vida anteriormente.
A bunda do policial deu um pulo sobre o assento enquanto ele se virou para encarar Alec, o que fez o veículo balançar.
— Resolveu abrir a boca, Alec? Isso é bom. Não. Isso é excelente.
Alec encarava o policial com olhos encharcados de raiva. O policial sabia disso, mas não se importava.
— Não o conheço, Alec. É impressão sua. Nunca nos vimos antes. Mas a polícia passou a conhecê-lo depois da primeira denúncia.
— Primeira denúncia…
— Isso mesmo. Agora o seu mundinho está acabado. Não era em um mundinho sujo que vivia, Alec?
Alec se ajeitou com dificuldade sobre o assoalho liso da viatura.
— É a verdade que querem, não é mesmo?
— Sim, a mais pura verdade, Alec. Com ela, só terá a lucrar.
— Muito bem. Mas, antes, tenho uma exigência a fazer.
— Não está em condições de exigir nada, Alec.
Os dois homens encaram-se por um instante.
— Nesse caso — Alec disse —, permanecerei calado até o momento que eu julgue certo de falar.
O policial raspou a garganta e se remexeu no assento.
— Tá bom, Alec. Diga qual é a sua exigência. Talvez podemos entrar num acordo.
— Pare de falar o meu nome repetidamente.
O policial pareceu pensar.
— Melhor, pare de falar meu nome de vez — Alec acrescentou. — Meu nome na sua voz soa uma coisa horrível, detesto a intimidade que usa ao pronunciá-lo.
O policial deu a entender que estava pensando um pouco mais.
— Tudo bem, Al… Tudo bem. Vamos à verdade então, que mais nos interessa.
— Não vai mais falar meu nome, certo?
— Correto.
— Não sei o que quis dizer quando disse que uma pessoa como eu só faz algo às escondidas por tanto tempo porque tem a inteligência a seu favor.
— Ora, Al… Desculpe o deslize. Sabe que estou falando dos rapazinhos que te tiram do eixo.
— Rapazinhos?
— Não é de garotinhos que gosta?
Alec sentiu ódio cair em sua corrente sanguínea.
— Um momento. Estão me levando preso porque acreditam que eu sou um… pervertido?
— A questão não é acreditar, Alec. Temos certe…
— Pare de falar meu nome, porra!
O policial assustou-se com o grito, deixando um leve amedrontamento transparecer. Mas, em seguida, pegou sua arma do colo e a apontou para Alec por entre as barras de ferro.
— Escuta aqui, seu pervertido do caralho, fale baixo com a polícia.
— Não sabem o que estão fazendo — Alec disse. — Não sou quem pensam que sou.
— Agora vou ter de falar seu nome. Não é Alec Durand que se chama, monte de merda?
— Sim, esse é o meu nome.
— Pois bem. Estamos com o marginal certo na viatura. — O policial parou de apontar a arma e a colocou de volta.
Alec sentiu o carro virar à esquerda e subir uma pequena rampa. Endireitou as costas para ver onde estavam. Pararam em frente a um pequeno prédio de dois andares, com uma janela larga para cada andar, e, entre elas, em letras pretas e grandes, 12º DP. Não havia luzes acesas, o lugar tinha aspecto de abandonado.
— Chegamos, Alec. Agora não temos mais um trato. Se gritar comigo mais uma vez, vai levar uma coça. Vai se arrepender.
O policial do assento do carona saiu primeiro. O motorista, em seguida.
— Desça — disse o policial assim que abriu a porta traseira da viatura. — E comporte-se, se não quiser que eu o carregue pelo cabelo.
Alec arrastou-se até a beirada do assoalho da viatura, jogou os pés algemados no chão e se colocou de pé sem dificuldade. Em seu olhar ainda havia ódio. O policial segurou o cotovelo de Alec.
— Vamos — disse.
Quando o policial ergueu o olhar na direção da porta de entrada, imediatamente franziu o cenho.
— Tem alguma coisa errada aqui, Tom — disse para seu colega.
— Não tenho dúvida disso, Arn.
— Não tem ninguém de plantão?
— Parece que não, Arn.
— Vamos entrar e ver de uma vez.
Lá dentro, Arn tateou a parede e encontrou o pino de ligar a luz; o estalo retumbou pela pequena sala de entrada.
— Venha — disse ele ao prisioneiro, levando-o por um estreito corredor.
Assim que chegaram em frente a uma das celas, o policial abriu a porta e empurrou Alec para dentro e a trancou.
— A porta da frente está trancada, Tom?
— Positivo.
— Ótimo — Arn disse e se voltou para Alec. — Me esqueci de avisá-lo que antes de ir para a cadeia, não esta, claro, passaria por uma pequena prova de resistência, Alec. Vai fazer bem a você. Vai servir de lição para suportar o que terá de fazer para sobreviver entre marginais da pesada. Acredito que sabe o que fazem com caras pervertidos como você, não sabe?
Alec encarou Arn.
— Me mostre a prova de resistência, então, policial de merda.
Os olhos de Arn faiscaram.
— Seu veado imundo. Como se atreve a falar assim com a polícia?
— Um amontoado de merda são vocês todos.
Arn arrancou o cassetete da cintura. Em seguida, Tom fez a mesma coisa.
— Vamos mostrar para ele quem é que manda aqui, chefe.
Alec explodiu em gargalhadas.
— Chefe? — Mais gargalhadas. — Seu puxa-saco de merda.
— Abre a cela, chefe. O primeiro round é meu.
Arn destrancou a cela e escancarou a porta, que bateu contra a estrutura de trás, produzindo um estouro metálico e pesado.
O delegado bateu a mão na mesa.
— Façam uma varredura nesta puta cidade. Tem muito pervertido por aí. Vamos pegar todos os suspeitos! Todos serão suspeitos até que provem o contrário.
Quando Tom entrou na cela, o rosto de Alec se encontrava imperturbado.
— Venha, policial de merda. Venha me dar a lição — desafiou.
Quando Tom deu o primeiro passo na direção de Alec, um rosnado metálico veio de dentro de uma das celas dos fundos.
— O que foi isso, chefe?
As luzes se apagaram antes de Arn responder.
Uma rajada de vento surgiu do nada e começou a girar no ambiente, fazendo as portas das celas bater contra suas paredes de metal, o chão começou a estremecer, estouros de lâmpadas, e um curto-circuito, emitindo uma rápida claridade no ambiente. Nesse rápido instante, Arn, Tom e Alec se assustaram com o que viram. A silhueta de alguém.
— Puta merda, chefe! Que porra é essa?
— Não sei, Tom. Fogo! Seja quem for!
Tom e Arn iniciaram uma sessão de disparos na direção de onde a silhueta tinha aparecido. Mas, pelo jeito, nenhum pareceu acertar corpo qualquer.
Outro relâmpago de eletricidade.
— Ali — Tom gritou, apontado para o intruso, já em outro lugar.
Mais tiros, e todos eles acertaram barras de ferro e, pelo ruído, as paredes.
Então a claridade retornou por completo.
Alec estava caído de lado no chão, em posição fetal, como a se proteger, ou tentar pelo menos. Os dois policiais estavam um de costas para o outro, com suas armas apontadas para a frente.
— A festa acabou, rapazes — disse uma voz grave, fantasmagórica.
Em um sobressalto, Tom e Arn se voltaram para a direção da voz, ainda com suas armas apontadas. Era um mascarado com pose delicada, até despreocupada. Não tinha arma, não tinha nada além de roupas escuras justas, máscara e chapéu pretos. Tom e Arn deram-se conta de outra coisa. Estavam presos em uma das celas.
Um disparo contra o mascarado saiu da arma de Arn. A bala chocou-se com uma das barras da cela. Arn puxou o gatilho mais uma vez. Saiu apenas um clique fraco.
— Me dá a sua, Tom.
A arma de Tom saiu da mão dele como se tivesse sido puxada por algo invisível e forte. Ela caiu no lado de fora da cela, e o mascarado riu, mostrando olhos e dentes bonitos.
— Não tenho dúvida de que se livraria desses merdas, Alec. — A voz ainda era grave e fantasmagórica. — Mas teria certa dificuldade.
— Quem é você? — Alec perguntou.
— O que quer que eu faça com eles, Alec? Diga, e farei.
— Por favor — Arn implorou —, não nos mate. Somos apenas dois policiais cumprindo nossa função à sociedade.
— A sua função? — Alec explodiu. — Vocês me pegaram e me acusaram de uma coisa que não é minha. Que função é essa, porra?
— Responda, Alec — insistiu o mascarado.
— Eu mesmo farei o que tenho de fazer — Alec respondeu, encarando os dois policiais. — Mas preciso me livrar dessas merdas.
Como se o mascarado tivesse uma batuta na mão enluvada, fez um movimento rápido. As algemas das mãos e dos pés de Alec caíram no chão. Tlim, tlim.
— São todos seus, Alec — o mascarado informou. E desapareceu em seguida.
Fez-se um silêncio de expectativas.
— Agora sou eu o problema que têm, seus sacos de lixo. — Alec riu. — Então? Queriam o quê? Mais pontuação ao me prenderem? O que iriam fazer exatamente para me incriminarem? Hein? — Alec andou para fora da cela e se colocou em frente à dos dois homens fardados.
— O que vai fazer com a gente, pervertido? — Arn perguntou. — Vai querer foder as nossas bundas também?
— Cale essa boca imunda.
— Ele não vai fazer nada com a gente, chefe — Tom comentou. — Vai nos matar?
Alec ergueu uma das mãos como se fosse pegar algo de suas costas. Os dois policiais ficaram apreensivos ao vê-lo fazer o movimento.
— Está enganado, Tom — Alec disse. — Veja só o que tenho aqui.
Era uma lâmina comprida e curvada, pondo à vista um brilho prateado.
— A gente não revistou esse imbecil, chefe?
— Sim, a gente revistou.
Alec deu um risinho e se aproximou mais.
— São os policiais mais incompetentes que já conheci, rapazes.
A ponta da lâmina começou a roçar as barras da cela lentamente. O ruído era sinistro.
Alec girou a chave da porta da cela. Claque!
— Venha, gostosão, venha que vamos lhe mostrar como se acaba com alguém imundo como você.
Alec abriu a porta e entrou na cela.
— Um prazer — disse.
Tom e Arn deram um passo atrás.
— Por que não deixa a foice lá fora, bonitão?
Alec deu um salto e girou o corpo duas vezes no ar. Puf! Puf! A lâmina acabara de separar os pés de Tom e Arn de suas respectivas pernas.
— Filho da puta! Filho da puta! — Arn berrou.
— Eu, sim, elimino o lixo deste mundo. — Alec riu. — Olhem pelo lado bom da coisa, rapazes, caso precisem. — Alec riu de novo.