O ocorrido do capítulo anterior é verdadeiro, embora possa soar para qualquer um uma grande e ridícula besteira, coisa de louco. E o Olavo da narrativa sou eu. Então, deixe-me contar a partir do começo.
Ao longe, vozes conversavam sobre os mais diferentes tipos de assuntos, objetos tilintavam e eu podia ouvir um vaivém incansável. De repente, uma voz feminina me chamou pelo nome, bem perto de mim, arrancando-me bruscamente do que até então parecia ser um sonho. Abri os olhos e vi uma mulher em um roupão cuja cor não se decidia entre o azul e o verde. O gorro dela tinha figurinhas de várias cores.
— Boa noite – disse ela, com um sorriso honesto no rosto.
Imediatamente, a minha memória recobrou as lembranças. Eu tinha sofrido um acidente de carro e, por isso, estava em um hospital. A mulher sorriu para mim de novo e me informou que a cirurgia correra bem.
— Cirurgia? – perguntei.
— A hemorragia em seu abdome está controlada. O casal que o trouxe ao hospital salvou a sua vida – informou-me ela, já dando atenção ao ruído metálico atrás dela.
Como se eu não estivesse mais ali, ou como se eu tivesse perdido a importância em um estalo de dedos, ela saiu apressada na direção de um leito móvel sendo empurrado para o leito fixo ao lado do meu. O corpo de alguém magro e comprido foi colocado em cima dele. Em seguida, a cama de rodinhas foi levada para fora da UTI e as pessoas que ficaram passaram a dedicar-se à instalação do recém-chegado. Alguém pronunciou a palavra “entubar” e a frase “Se ele conseguir sair dessa” de modo profissional. Então é um homem que está à minha direita, pensei. Depois de sons estranhos, os quais associei com “entubação”, a mulher que tinha me acordado saiu de trás do biombo (digo “biombo” porque se parecia com um biombo – inteiriço, no entanto) foi falar com outra mulher, que estava atrás do balcão circular, localizado bem no meio da UTI, e pediu-lhe alguma coisa. Ao voltar, dirigi-lhe a palavra. Minha voz saiu estranha e rouca, como se ameaçasse falhar. A honestidade retornou ao seu rosto, e ela se aproximou com prontidão.
— O que aconteceu com ele? – perguntei.
Ela pareceu aliviada ao entender que o que eu queria era algo corriqueiro.
— Daqui a pouco venho aqui – ela respondeu, retomando seu destino com determinação.
Enquanto o “daqui a pouco” dela se transformava em horas, descobri que o homem comprido era mais comprido do que o normal, pois podia ver seus pés para fora da cama e do biombo. A cor da pele era bonita e saudável, e revelava a flor da idade.
Finalmente, a mulher de gorro cheio de figurinhas coloridas se postou ao meu lado, perguntando se estava tudo bem comigo.
— Acho que sim – respondi.
— Ótimo – disse ela, começando a se distanciar.
— O que aconteceu com ele, doutora? A senhora é doutora ou enfermeira?
— Médica. — Ela voltou um passo para o meu leito e me informou que o garoto, de 14 anos, havia caído de sua bicicleta, batido a cabeça no meio-fio e sofrido séria lesão craniana. — Se ele sobreviver, será trabalho da interferência divina.
Ao observá-la ir para outro leito (perto da entrada da UTI e isolado com vidro), convenci-me de que era privilegiado e sortudo. Mas, de repente, senti-me mal por sentir-me desse jeito, por estar vivo e consciente, enquanto que o garoto ao meu lado estava inconsciente e sem garantia qualquer de voltar a enxergar este mundo outra vez. E pior: se ele morresse, aos 14 anos, por que a chance de usufruir da vida lhe teria sido negado?
Na manhã seguinte, o coração dele parou de bater. Fiquei triste e chocado, e me emocionei ao vê-lo ser transportado para fora, dessa vez sem urgência qualquer.
Mais tarde, eu estava em meio a um questionamento a respeito dos méritos e deméritos que nos são atribuídos ao longo da vida (Por que enquanto uns choravam, outros vendiam lenços? Por que eu tinha sido poupado e o garoto não? Quais foram os méritos meus e quais foram os deméritos daquela alma tão jovem?) quando outra maca entrou apressada, dessa vez indo para o leito da minha esquerda. A olhada rápida que consegui dar (soerguendo a cabeça) me fez ver que se tratava de uma mulher com idade para ser minha avó. De novo, uma movimentação – quase que sem palavra trocada – ocorreu atrás do biombo. Não sei quanto tempo depois, mas sei que não foi menos de uma hora, uma das enfermeiras se aproximou do leito da mulher.
— Dona Eliza, a senhora está sentindo alguma dor? – perguntou a enfermeira.
Não ouvi resposta, mas entendi que dona Eliza fizera um gesto negativo porque a enfermeira perguntou-lhe se ela tinha certeza de que não.
De madrugada, acordei com outra movimentação, alvoroçada. Agucei os ouvidos e entendi que era em volta de dona Eliza. O ruído que vinha de lá era parecido com o ruído de quando se enche o pneu de uma bicicleta com bomba de ar manual, só que acompanhado de um cicio metálico. Um homem à beira da meia-idade surgiu correndo pela porta de entrada, dirigindo-se ao leito da idosa. Ele estava fechando o zíper da calça e tinha a cara amarrotada de sono.
— Dê uma mão aqui, doutor. — A voz que fez o pedido saiu praticamente suplicante, como se a força dele fosse a força que faltava, e o cicio passou a soar mais forte.
Nesse momento, meu coração estava acelerado, porque eu sabia que estava “testemunhando” uma tensa disputa entre forças potentes (mãos profissionais insistindo na vida e a morte pairando sobre aquele leito, anunciando-se iminente). Passei a desejar que, depois de uma daquelas compressões vigorosas, dona Eliza tossisse e recobrasse o fôlego. E que alguém dissesse que os batimentos cardíacos dela haviam retornado. Mas as compressões pararam. Ninguém pareceu comemorar, e todos – eram umas cinco ou seis pessoas – saíram de trás do biombo. Enquanto cada um ia para outros deveres, uma enfermeira passou na frente da minha cama, tirando as luvas das mãos.
— Um gasto a menos para o hospital – disse ela, em meio a um suspiro de cansaço.
Eu a odiei naquele momento, e desejei que ela tivesse uma crise de cólica renal, das mais excruciantes, e suplicasse por horas para que o hospital se empenhasse – com o que tinha e com o que não tinha – a devolver-lhe a paz do bem-estar.
Minha ira se amolentou quando dona Eliza passou transportada para fora da UTI, estática, sem vida e escondida por um lençol sobre a maca de rodinhas. De novo, a tristeza e a emoção me assaltaram. Lembro-me de ter pensado que, se eu pudesse, teria pulado da minha cama para alcançá-la e tocar-lhe o rosto, oferecendo-lhe metade dos dias de vida que me restavam.
No início da manhã seguinte, os funcionários da UTI já eram outros; um novo turno acabara de se iniciar. Um homem de aproximadamente sessenta anos, cabeça quase toda branca e óculos antiquados, chegou perto da minha cama e verificou algo acima da minha cabeça. Ele não me cumprimentou nem olhou para mim. Mas eu esperei que pelo menos um aceno de cabeça fizesse ao se afastar. Não o fez. Foi conversar com um enfermeiro robusto, o qual me visitou minuto depois. (Somente no quarto foi que eu soube o que o médico dissera ao enfermeiro. A minha pressão estivera um pouco alta.) Ele mexeu em algum dos frascos da medicação que estava conectada ao meu corpo e, de repente, eu estava vendo o céu, escuro e com estrelas girando em câmera lenta. Eram incontáveis estrelas; somente uma possuía tamanho destacado. Ela flutuou por entre as menores e parou no rumo dos meus olhos. Depois do instante em que pareceu me observar, como se olhos tivesse, lançou um feixe luminoso em minha direção, alvejando a minha visão em cheio. Subitamente soergui meio corpo, apavorado, gritando por ajuda.
— Tudo bem, tudo bem. — Uma enfermeira de sorriso e toque que transmitiam paz estava ao meu lado. — Foi apenas um sonho, nada mais. Tranquilize-se.
Naquela tarde, ouvi parte da conversa entre o enfermeiro robusto e a enfermeira de sorriso bonito, cujo nome era Danielle.
— O que aconteceu com Iolanda? – ela inquiriu.
— Teve cólicas renais horríveis, pela primeira vez na vida. Nem conseguiu ir para casa. Ficou internada na ala 2 – ele respondeu.
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