Um dos meus capítulos favoritos de A Devolução

ENQUANTO EMERSON e Anna falavam com o doutor Wilson, Luca estava sendo levado da UTI para um dos quartos. Algum milagre tinha acontecido durante suas horas de sono. Quem primeiro apontou para o detalhe foi a assistente de enfermagem robusta, que teve de dobrar o turno como pagamento para uma colega. Ligaram imediatamente para a doutora Bernadete, e ela veio às pressas para ver o que de fato estava se passando. Assim que ela chegou, ficou abismada. De fato, tratava-se de um milagre. Não havia outra palavra para descrever o que tinha acontecido. Mais de cinquenta por cento da queimadura do rosto do policial havia desaparecido. Dona Mercedes e o Sr. Getúlio caíram em lágrimas de felicidade.

— Onde fica a capela do hospital, enfermeira? – perguntou Dona Mercedes à moça robusta. Ela precisava agradecer a Deus.

A moça robusta explicou-lhe que não era bem uma capela, e sim um pequeno oratório, mas se ela preferisse, após cruzar a rua, estaria na igreja do bairro.

— Não preciso de uma igreja. Só preciso de um lugar onde me ajoelhar. 

Assim que teve a explicação – não inteira; metade bastava – a mãe de Luca saiu aligeirada.

Duas horas mais tarde, a doutora Bernadete deu uma escapada da UTI e foi checar como Luca se encontrava. Os rostos de Dona Mercedes e do Sr. Getúlio se iluminaram ao vê-la entrar no quarto. O “novo” rosto do rapaz revelou à médica traços de beleza que ela nem pensara em supor que ele tivesse. Luca sorriu um sorriso gracioso, e ela determinou que ele seria ainda mais bonito assim que o milagre terminasse o trabalho.

— Todas as vezes em que dou alta a um paciente, que o mando embora para seguir a vida, meu coração se enche de alegria. É o que vou fazer daqui a pouco, Luca. Mandá-lo para casa e deixar meu coração se encher de alegria.

Dona Mercedes secou os olhos com a manga da blusa.

— O crédito pela sua rápida recuperação – continuou a doutora – não é meu nem deste hospital. É de Deus. Agradeça a Ele todos os dias.

Luca também teve de secar os olhos, com a costa da mão.

A doutora Bernadete apertou-lhe o antebraço de modo afável.

— Eu volto daqui a pouco – concluiu ela e, com seu jeito peculiar de andar, saiu do quarto.  

quando você for dormir hoje

Quando você for dormir hoje, lembre-se do momento em que foi dormir ontem. Quando você for dormir amanhã, lembre-se do momento em que foi dormir hoje. Quando você for dormir depois de amanhã, lembre-se do momento em que foi dormir amanhã. Quando você for dormir daqui a dez dias, lembre-se do momento em que foi dormir daqui a nove dias. Quando chegar o Natal, lembre-se do Natal do ano passado, e depois do retrasado e depois de todos os que conseguir trazer à memória. Vai ver que cada um desses momentos está incrível, inacreditável, absurda e demasiadamente perto um do outro. Olhe para trás e veja fileira de momentos em que foi dormir e a fileira de Natais que já tem. É o tempo negociando trocas com você, e, sem gentileza qualquer, zombando da sua vaidade.     

Sinceramente,

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eu vivo os meus dias muito insinceramente.

Insinceramente a ponto de fazer recusas à base de explicações improvisadas, diplomáticas para não magoar,

de aceitar convites resistindo à resistência,

para não ferir,

de não ser capaz de abaixar a cabeça quando,

com vontade do silêncio,

só do silêncio,

passo por algum conhecido na rua e falo Oi,

só para parecer alguém apenas normal.

Eu ando tão insincero que,

diante da oferta de mais um cafezinho,

com ele já despejado na xícara,

acabo tomando mais um cafezinho;

por, quando inevitável,

fazer parte de conversas sobre coisas em que não acredito,

ou que não me seduzem.  

Tão insinceros têm sido os meus dias

que até consigo afirmar odiar.

Até declarar e reiterar amar.  

Tenho sido tão adiáfano que

nem mesmo o espelho

tem tanta certeza de mim.

Como poderia dizer?

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Não consigo me lembrar, mas acho que se não foi o primeiro, aquele LP do Frank Sinatra foi um dos primeiros que comprei. Da loja para casa, com ele embrulhado debaixo do braço, eu estava em dúvida se tinha feito uma boa aquisição, se só por New York New York teria valido a pena pagar pelo disco todo, ao mesmo tempo analisando que antes de me decidir, enquanto estudava a lista das canções – nunca tinha ouvido Strangers in the Night, nem Something Stupid ou Fly me to the Moon, e, talvez surpreendentemente, nem My Way –, o vendedor estrategicamente colocou uma faixa para tocar, potentemente reproduzida pelas caixas de som da loja para me convencer. Eu também tinha, entre alguns outros que com o tempo adquiri, indicado por um colega de trabalho, um do Jason Donavan, com Too Many Broken Hearts, Sealed With a Kiss (que me fazia lembrar da minha primeira paixão, a que pela primeira vez na vida, sob o cobertor protetor do anonimato, encorajado pelo aqui-na-cidade-grande-isso-pode-porque-ninguém-liga, me proporcionou ouvir e dizer tantos eu-te-amos, mas que resultou devastadora e malsucedida), e tinha Especially for You também. Na verdade, eu gostava de todas as canções do disco dele. Nunca comprei um do Donimo Dancin’, que tocava incansavelmente à época. Preferia ouvir os Pet Shop Boys nas boates do Bixiga, só nas boates do Bixiga, onde só tinha aqui-na-cidade-grande-isso-pode-porque-ninguém-liga. Porém, como quem hoje se rasga por Britney Spears, Beyoncé e Lady Gaga, comprei, durante a recém-chegada do formato CD, o de La Isla Bonita, ao qual sozinho em minha quitinete dançava desajeitadamente, depois de me certificar que a cortina e a porta estivessem devidamente fechadas. Para descansar sentado, obedecendo aos meus primeiros impulsos à introspecção, reouvia as declarações de My Way – entre elas: regrets I’ve had a few; I’ve loved, laughed and cried; I’ve had my fill, my share of losing, as quais imaginava que orgulhosamente diria um dia – acho que não chegou a hora ainda; e às vezes tentava imaginar as possíveis sensações que And now the end is near poderiam me oferecer – também acho (e espero) que falta bastantão para chegar a hora… Todos os meus amigos daquele tempo, enquanto franziam a cara para Frank Sinatra, preferiam Donna Summer e o Breakaway dela. Eu gostava também. Não muito, mas gostava. Mais tarde, descobri que tinha My Way até em francês, na verdade a versão original. Porém Comme d’Habitude não me soou legal como me soava na língua do Sinatra, certamente por achar que o arranjo era pouco enfeitado, chegando a me provocar estranhamento, como me provoca Garota de Ipanema em inglês. Daqueles amigos, um morreu. O outro, se não me engano, já se esqueceu de Donna Summer, mas provavelmente, se ainda for como era, deve dar pulos ao som de Despacito e de O Show das Poderosas. A gente se encontrou no Facebook há algum tempo, e ainda não me ocorreu tocar no assunto. E o outro, que cantava A Little Respect pra lá e pra cá pelos corredores da escola, hoje canta New York New York em karaokês. De vez em quando me convida. Não fui ainda. E eu, eu continuo do mesmo jeito, ouvindo até Rosário Flores.

Uma bem grande e tantas outras lembranças 1

Era um dos sábados de janeiro de 1992, final de tarde chuvosa, e nós tínhamos acabado de nos mudar para um apartamento maior, bem maior. Tinha três quartos, dois banheiros, uma sala enorme, com dois ambientes, uma cozinha que, ao nos dar a entender que permitia duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, nos fez rir de alegria; e tinha uma área de serviço que dava até gosto de ver, com espaço e pré-instalação para uma lavadora de roupas e um varal deixado pelo inquilino anterior. Estávamos tão animados com a mudança que, por vários minutos, andamos pela casa, às vezes cada um pra um lado, às vezes juntos, só para usufruir da satisfação causada pelo tamanho do lugar. O beliche foi transformado em duas partes separadas, e cada uma foi para um quarto, depois de decidirmos em qual dormiria quem. Olhando da porta do meu quarto, a minha cama, sob a fraca luz que entrava pela janela semi-aberta, simplesmente parecia uma alma solitária. Os dois sofás de dois lugares, mais a estreita estante (cambaleante por causa da velhice), mais a TV em preto-e-branco, pareceram ocupar um dos ambientes da sala sem muito deixar a desejar. A geladeira e o fogão chegaram timidamente à cozinha, cada um pra um lado, como se tivessem sido obrigados à ruptura de um relacionamento de anos. Mas tudo bem. Lá estávamos todos nós: meu flatmate, eu e a despretensiosa mobília.

No dia seguinte, acordei por volta das 10:30. O quarto estava totalmente iluminado pela luz do sol, coisa que jamais acontecia lá na quitinete do centro, onde a cortina que contribuía para dois únicos ambientes não a deixava entrar. A casa estava silenciosa, mas os ruídos do preguiçoso trânsito de domingo na avenida chegavam à beira da janela. Levantei-me, desamarrotei manualmente uma camiseta que estava em uma das sacolas adquiridas para a mudança, fui ao banheiro e, quando passei em frente à sala para ir à cozinha, vi Alfred já desfrutando da casa, esparramado em um dos sofás, lendo o jornal. Ele já tinha saído para dar uma espiada na vizinhança, percebi.

— Tem uma padaria bem ao lado da portaria – ele me falou. — Vamos lá pra você conhecer? Tá a fim de tomar um café?

Dona Noêmia era a dona, que também era a balconista e a responsável pelo caixa. Espontânea, barulhenta, receptiva, sorridente. Com o tempo, a gente passou a dar um pulo lá todos os dias, e percebemos que ela se refreava na frente do marido sisudo, que passava de vez em quando, decerto para dar uma olhada no andamento das coisas. Um dia, ela pediu, depois de ter nos contado sobre a difícil juventude lá em seu estado natal, que lhe comprássemos, da própria padaria, um refrigerante; um guaraná, de preferência. Eu ri, Alfred riu, e pensamos que estava apenas brincando. Mas não estava. Ela tomou o líquido com tanto prazer que seus olhos ameaçaram lacrimejar. Houve outras poucas vezes em que ela nos pediu um docinho da vitrine, “Aquele ali, ó”, ou um café com leite, ou, de novo, outro guaraná. Alfred mergulhou numa reflexão, pressupondo que isso se dava porque lhe fazia bem relembrar os tempos de solteira, junto de pai e mãe, que sentia saudade das antigas sensações da pouca fartura, e gostava de visitá-las ao sabor de um copo de Tubaína, ou de um pão doce, e que a graça de já ter praticamente tudo, a julgar pelas roupas que o filho usava, pelos modelos de dois ou três carros com que o marido se exibia ao chegar, quase já nem mais existia. Já eu fui mais longe. Para mim, nada, nem mesmo uma bala, saía daquela padaria sem uma explicação contábil. O homem com cara séria devia ser é muito tacanho, mão de vaca, isso sim. Para mim, apesar da padaria, dos carros, do “apartamento enorme em que morava”, conforme ela enfaticamente nos contou várias vezes, e apesar de um outro comércio que ela vez ou outra trazia à conversa, Dona Noêmia não tinha ainda conseguido se livrar de algumas privações, ou das privações, e que possivelmente jamais conseguiria. Não sei.

Da outra noite

Lá no bloco um, alguém resolveu quebrar as regras do silêncio obrigatório após as vinte e duas. Não posso afirmar, mas posso supor que arreganhou as janelas; a acústica me leva a isso. Será homem? Será mulher? Qual desses foi que resolveu expor a todos nós, que queremos a paz, as suas, sei lá, talvez dores, talvez saudades, a esta hora, com Laura Pausini cantando La Solitudine no modo repeat, incansavelmente? Credo! é o que me ocorre dizer. Preciso pôr o filme no pause, me levantar daqui e abrir a janela da sala, fazendo barulho, quem sabe mais do que a cantora, para que o ouvinte entristecido se aperceba do meu espaço invadido, do quanto não me interessa, possivelmente nem a muitos, o que a sua solitude e o seu Marco andaram fazendo. Separo as folhas de vidro estrondosamente, na expectativa de ser notado por alguma das luzes acesas do outro lado. Espero, e espero, e nada. Observo, e observo, e não consigo determinar de qual das vidraças, totalmente e semi-acortinadas – pro meu espanto, nenhuma arreganhada – a infelicidade está sendo convidada a se escoar. Apesar do pavor de altura, debruço no parapeito, braços cruzados; claro que com uma das pernas totalmente esticadas para trás, a fim de ter certeza inconfundível de que a maior parte do meu corpo se encontra no lado de dentro – a gravidade é traiçoeira – eu, hein! De repente vejo um jovem bem avultado passar lentamente por uma porta, indo – com base no formato do meu apartamento – da cozinha para a sala. Devagar desaparece da primeira e, bem lentamente, reaparece na segunda janela, e se joga de cara na cama. Que horas são afinal? Retorno para dentro e pego o celular; é quase uma da manhã! (Isso mesmo: chocado, abismado!) Olha a hora, ordinário!, sussurro, de volta ao parapeito, só que dessa vez sem me debruçar. Volta para a cozinha, faz um chá de camomila, toma água com açúcar, sei lá, liga pra ele e fala do teu amor, ou, talvez melhor, toma um Alprazolam de miligrama máxima! (Não vou aconselhar uma Sertralina ou algo do tipo, pois perigo será de mudar a faixa para Ilariê da Xuxa. Cruz-credo!)

Destravo o meu filme, procuro focar nele, só nele. Mas não consigo. Perco a conta de quantas vezes ouvi a palavra Marco. Pulo da cama, bum!, e agarro o interfone, como se a culpa fosse dele. Alô? Porteiro? Está acontecendo isso, assim, assim e assim.

Depois de ansiosamente aguardar por quase dez minutos, Laura cala a boca. Isso mesmo, maledetta, stai zitta una volta per tutte! Espio radiante por detrás da cortina. Dou de cara com o homenzarrão. Cruz-credo! Viro a cara que nem Dona Florinda, cerro a vidraça e a cortina, e volto pro meu filme. Boa noite.